Monday 26 February 2007

O guardião do segredo


Embalo-me, agora. A Moonlight Sonata é a mãe de lágrimas que amamenta o meu sentimento. Que ainda aguardo sentir... ao longe um sino desperta-me e recorda-me o segredo. Termino a viagem astral e tento adormecer... adormecer...adormecer...

A casa do bosque era o meu refúgio. Lá esquecia os olhos que me permitiam reconhecê-la. Vida após vida, ciclo após ciclo, aqueles olhos eram o sinal de que também ela vivia. Vivendo em mim o brilho intenso quando os contemplava novamente... e era sempre a primeira vez. Naquele solo repousa o segredo milenar, o segredo Antigo, o mistério derradeiro... naquele solo repousa a explicação de estar a ser acossado por uns olhos existência atrás de existência... avisam-me:
- Não falarás, filho da Luz...

Não falarei... é com a alma que aprisiona os olhos que me exprimo. É com o meu corpo que me exprimo. São as minhas mãos vagabundas que erram na sua carne que me calo. Saio das cinzas em que me prostaram, esmangando-me com o peso do segredo, para o fogo que me faz esquecê-lo... e assim será vida após vida, ciclo após ciclo...

Naquele chão, junto a uma casa do bosque que era o meu refúgio repousa um segredo. Um segredo que devo esquecer porque sou um filho da luz. Um segredo que pertence ao filho do Homem e só Ele pode resgatar...

Há que esgravatar na terra para atingir os céus... há que esgravatar na terra para atingir os céus..

( Água... quero água...)
( Toma vinagre...)

( Traidora, traidora... porque me abandonaste?...)
( Porque és o meu filho muito dilecto e em ti deposito toda a esperança..)

( Não é Ele o teu filho? Porque sou eu castigado, fustigado por ele? Não é ele o filho do Homem?)
( Tomas o lugar dele por seres um filho da luz. Vida após vida, ciclo após ciclo, serás o guardião do segredo que ele transporta... e ela... ele é o filho do Homem, ele tem a Palavra. Tu tens a força e a Luz... caíste, Arcanjo, acata a tua penitência até te devolver as asas...)

Vejo uns olhos junto ao filho do Homem... parte com ele... abandona-me...

- Traidora, traidora.. porque me abandonaste??

Os meus gritos foram abafados pela intempérie que se abateu sobre aquele maldito lugar de caveiras e fantasmas. A terra ficou negra e finalmente adormeci.

...

Acordei agora. Preciso de um duche tépido e de ouvir a Moonlight Sonata. Vou para o bosque...

Monday 19 February 2007

Olha a cabeleira do Zezé...


... será que ele é? Será que ele é??

Carnaval de Torres Vedras, numa espelunca chamada Hora H. Conheci a mulher da minha vida.. a minha alma gémea... estava mascarada de homem. Ou melhor, tinha um bigode e deixou crescer os pêlos das suas esbeltas pernas.. de resto mantinha-se a mulher sexy que sempre foi: lingerie preta, rendada, provocante... seios deslumbrantes ( busto 42, calculo ). Apetecia-me fazer daqueles seios o meu muro das lamentações... ai...

Entre beijos e gemidos, entre uma imperial e uma caneca, entre ir vomitar no WC e voltar, jurei-lhe o meu amor. Eterno e fiável, como qualquer estúpido amor... senti-lhe as nádegas rijas. Fiz delas um tambor enquanto ouvia ainda aquela doce canção... « Olha a cabeleira do Zezé... será que ele é?? Será que ele é?»...

- Querida... casa comigo. Quero ter filhos teus...

- Aiiiiiiii querido... sabes bem que não posso ter filhos, seu brincalhão...

Raios, sabia lá eu! Será que já tinhamos falado sobre isso? Puta que pariu a minha bebedeira!

Despedi-me dela... Hora H para voltar para casa... estranhei o bigode não ter caído... apesar de o ter tentado arrancar com os meus dentes... enfim, era um bom disfarce. Despediu-se de mim chamando-me animal selvagem, calculo...

- Minha bichinha louca... gostei muito, muito...

Bichinha louca... gostei! Sai a assobiar, esfusiante de alegria...

Olha a cabeleira do Zezé... será que ele é... será que ele é...

( E continuo sem perceber a merda da letra... será que ele é o quê,
foda-se?? )

Monday 12 February 2007

Miriam

Miriam... o nome ainda hoje é sussurrado com temor. Os lábios incautos que deixam soltar o seu nome rapidamente se fecham. Segue-se o sinal da cruz, o pedido de perdão a Deus e não se fala mais de Miriam... Miriam era uma bruxa.


Vou falar-vos de Miriam. Miriam era uma menina. Miriam era uma mulher. Miriam era uma anciã de idade indefinida... teria vinte anos certamente, a julgar pelo verde dos seus olhos e pelas longas tranças loiras que bailavam nas suas costas... teria cem anos certamente, quando a observava a colher ervas, a fazer mezinhas e poções, a sarar feridas a falar com os outros a linguagem do Homem e comigo a linguagem dos anjos...

Vou falar-vos de Miriam. Miriam era uma amante que me sarou as feridas com ungento e as secou com palha... Miriam era uma amante que me feriu mortalmente no coração... sem cura possivel restava atenuar a minha dor. Com as suas coxas, com a sua lingua, com o seu sexo.

Miriam era uma bruxa. Assim disseram eles quando magoaram os seus frágeis pulsos com ásperas cordas... quando magoaram as suas costas onde outrora as tranças loiras bailavam, unindo-as a um tosco pedaço de madeira... quando enfim acenderam a pira da redenção para gente rude, de purificação dos mentecaptos... Miriam era uma bruxa que ia ser queimada...

Miriam era Amor quando os seus olhos limpidos de lágrimas derramadas se fixaram nos meus.. e depois na minha mão direita que tanto a acariciara... e depois no punhal que eu erguia... Miriam sorriu quando ele se cravou naquele coração... Miriam era a minha mulher e o único fogo que sentiria seria o que ateávamos todas as noites com o calor dos nossos corpos...

Miriam perdoei os meus assassinos. Não há perdão para o teu.

Tuesday 6 February 2007

AIDA - A abertura


Magnifico, sublime, estrondoso, brilhante... foi assim que vi a Aida.

Abriram as cortinas, lentamente... uma suave música instalou-se naquela sala onde a magia acontece e se entranha no ar, qual ácaro ébrio nostálgico de uma qualquer ácara... Apareceu a personagem, voz poderosissima, manto real rubro, eu já ao rubro e prestes a enrubescer ao visualizar as coxas fartas e os seios opulentos daquela diva que se agitava já num espasmo incessante com a graciosidade de uma vaca prestes a parir... ópera, senhores e senhoras, ópera onde tudo se torna inoperante...

Foi assim a abertura da Aida ... e mal ela se abriu penetrei-a que nem um garanhão cioso, relinchando « Ai..... daaaaaaaaaa ».

E estou com uma ressaca do caralho, a propósito...

Thursday 1 February 2007

Para um ANTIGO

Procuro porque me sinto incompleto. Nada perdi e sinto-me perdido... é uma estranha sensação, incómoda, que me leva a ser um eterno explorador de mim próprio. Já terei sido dono do mundo e tê-lo-ei trocado por uma alma?... Esclarece-me...

( Não te esclareço. Ilumino-te. Faz uma fogueira, dá-me uma manta e partilha comigo esse vinho. Alimenta-me o corpo enquanto eu te alimentar o espirito. Só assim o spiritus será livre. Só assim o pacto pode ser honesto. Perfeito... brinda comigo agora, humano. E recorda-te dos seres de Luz atraídos pela escuridão.... recorda-te... sim, cerra os teus olhos humanos, corre essa cortina e vê. Vê finalmente, agora que estás privado da tua visão... vê... recorda-te de onde vieste... recorda-te...)

Entre os Antigos existia o Povo Belo. Seres hermafroditas numa perfeita comunhão de luz. Osmose espiritual... os Antigos eram os protectores desta comunidade. Paz... Pax... O Canto elevava-se... o tom era melódico, harmonioso... embalava e aquecia, encantava e protegia...

Recordo-me quando a lua não apareceu... uma nuvem ou uma espada esconderam-na... recordo-me de ver o Povo Belo extasiar-se com o desconhecido, adorando aquela escuridão...
Recordo-me de eu próprio ter apagado a vela do Conhecimento.
Recordo-me de eu próprio ter apagado a vela da Justiça.
Outros apagaram as restantes velas num cego furor. Impelidos pelo desejo de escuridão, destruimos a Luz... nunca mais seriamos o Povo Belo. Os Antigos julgaram-nos, céleres. A fila que formámos foi o nosso ultimo acto de união... atravessava todos os rios, abraçava todos os vales tocava todos os cumes este estranho cordão que eram os nossos corpos perfilados entre a espada da justiça.

Um a um fomos cortados ao meio... seriamos eternamente metade do que fomos, outrora.

E condenados a errar pela escuridão que criámos... eternamente...na demanda da nossa outra metade.

( Abre os olhos... abre os olhos... o fogo está apagado... o vinho acabou... a manta está fria... abre os olhos, humano. A partilha está feita e o spiritus fluiu. Abre os olhos, humano. Abre os olhos..)