Monday 16 November 2009

A quem chegar

Bem vinda. Esta mão que te aperta é suave como vês. Mas ainda vigorosa. O dedo que vai acariciando a palma da tua mão pertenceu a artistas, a guerreiros, a fadistas e poetas, pertenceu ao vento e á água cálida de um lago ao luar. O braço que se estende, apontando-te a porta, é esguio. Magro e cicatrizado. Marcado. Cada veia saliente diz-te apenas o que não queres ouvir... já não há sangue quente que as possa percorrer. Frio. Gélido. Capaz de congelar as águas cálidas de um lago ao luar. Os olhos... os olhos que te olham não são meus. São tristes e sem expressão. Gastos, gastos. Em rasgos de visões violentas e promessas incumpridas do que assistiram sem viver. Como rapaz do tambor que fui, impedido de combater. São a ideia concreta de que lá longe existe uma aldeia com um lago com águas cálidas. Lidas as mágoas, não lides com elas. Desvia o olhar, estrangeira, que o meu pode queimar. Embora triste e sem expressão. É fogo-fátuo e ilusão.. não te enganes.. são apenas sonhos que vislumbras. Mas não me olhes nos olhos. Olha-me a face... falta um sorriso, bem sei. Pensei que sabias a minha história. Sabes... são apenas rumores. As pessoas que te digam que um dia eu sorri, enganaram-te. Olha para os meus lábios, agora... não são lábios de alguém feliz, pois não? Como esperas ver esta curva efémera formar-se e desaparecer? Ainda assim, toca-lhes. Estão frios. Gélidos. Não, estrangeira. Nunca os verás rasgar-se, num lento movimento, e formarem - por um momento - um esboço de sorriso.Preciso deles, agora. Retira o teu dedo. Deixa-me falar estrangeira.

És bem vinda, se quiseres entrar nesta porta. Mas há algo que para mim não importa, mas que te vejo a pensar, talvez confusa e assustada. E sabes?... Tens razão. Já não tenho coração. Ficou algures na lua cheia, ou no cheiro a terra molhada daquela aldeia, ficou no lago de águas cálidas, ficou no velho porão, ficou soterrado na terra que mineiro algum escavará, ficou no velho Pomarão.

Se ainda assim queres entrar, és bem vinda estrangeira. Mas se olhares agora para os meus olhos verás que te avisam... « não..».
E no tempo das lágrimas nunca te vi avançar contra a morte. Forte, corajoso e leal. Como foste toda a vida.

- Avô, porque dizes que no xadrez a peça mais importante é a rainha?? Não devia ser o Rei?
- Pergunta á tua avó. Ela não sabe jogar mas responde-te.

Nunca lhe perguntei.. ainda hoje há tantas perguntas por fazer. Tantas respostas irónicas por ouvir... vê se te lembras velhote: estavas no hospital. Não me queriam deixar entrar. Tu ameaçaste tirar todos aqueles tubos, fios e coisas esquisitas, se não deixasssem entrar o menino...
Depois mandaste-me aproximar... e com o teu derradeiro esforço ainda conseguiste sorrir... e perguntar:
- Quais são os jogos do fim de semana?
- Vô, o Benfica vai jogar a Faro, o Sporting recebe a Académica e o Porto recebe o Estoril.
- Só o Benfica é que joga fora? Sacanas... arranjam sempre maneira de jogar em casa para lixar o Benfica...

Depois piscaste-me o olho. Como sempre fazias quando acabavas de ser « sacaninha ».

Depois fechaste os dois olhos, e aí sim... foste sacaninha. Forte, corajoso e leal... mas sacaninha.

No tempo das lágrimas fica apenas o nó, apertado, o nó gasto. E ficas tu. Que avançaste para a morte forte. Corajoso e leal. Como foste toda a vida.

Até já...

Sunday 15 November 2009

Ainda no tempo das lágrimas, o menino era feliz. Nunca pensou que um carrinho de rolamentos em miniatura ( sem a caixa de madeira gamada na mercearia da Gertrudes ), atingisse tal velocidade. Realmente.. um sapato tosco, quatro rodinhas... e voava!! O pior era quando o Sr. Vovô lhe largava a mão... ainda voava sim, mas contra a parede!

- Vô... o carro não tem travão!
- São patins, menino...

Talvez tenha começado aí a viragem. Ou a viagem. Ou a vertigem. A parede começou a ser amiga e conselheira. Como não haveria de ser, se o menino já lhe tinha tocado, esbarrado, empurrado, rasgado... até amante seria, decerto. Se não falássemos num menino.

- Um dia, vais jogar no Benfica.
- Não quero vô... serei sempre do Benfica mas o Realista é do Porto. Não posso jogar contra o Realista.
- Das duas uma: ou o Realista vai jogar para o Benfica ou vais ser melhor que ele!

O Realista ( e para o menino, o melhor ainda hoje ) nunca jogou no Benfica.
O menino, que hoje é um pouco mais realista, nunca foi melhor que o grande Carlos Realista. Mas gostava de ter tido o velhote na bancada, quando jogava pelo Benfica. Mas se tivesse o velhote na bancada, não olharia para o tecto da pavilhão sempre que marcava. Olhava para a bancada, via o velhote e pronto. Olhava para ele. O Sr. Vovô que era mais realista e não gostava do Realista ( por ser do Porto ), nunca viu o menino com aquela camisola vermelha a marcar um golo e a olhar absorto para o tecto do pavilhão...

( Porque não olhar para as traves que sustentam um tecto, se ao menino recordavam apenas a trave que foi o seu tecto... )

Saturday 14 November 2009

Ele ainda recorda o tempo das lágrimas. E com o tempo que lhe resta recorda em lágrimas. Em tempos existiram olhares que fulminavam, mãos que acenavam, unhas que cravavam. Lágrimas criadas por sorrisos tontos e logo secadas com um sorriso alheio mas tão - tão!! - cúmplice. É tudo o que resta, recordar. Porque amanhã não haverão palavras - estão inquinadas -, não haverão sorrisos - pereceram -, sobretudo não haverão lágrimas - secaram -, e nada ficará por recordar... ele sabe que pode bem sem recordações. Já esqueceu muitas... ele não recorda recordações. Acorda emoções.

- Já não quero o ursinho que se ri quando o aperto. Prefiro um balão. Quero um balão!
- Um balão?.. E não queres o ursinho?
- Não. Quero um balão. Daqueles que voam porque estão ligados á máquina que os faz voar.
- Está bem. Compramos o balão e fica o ursinho para a próxima feira.

- Então filho?? Deixaste fugir o balão!!
- Pois deixei. Vai dizer olá ao avô.

O céu já não é o mesmo. Talvez as estrelas ainda sejam as mesmas. Mas não o céu. Nem as estrelas. Se não as vejo, não podem ser as mesmas. E não acredito que escondidas num céu sujo vadiem as minhas estrelas. Ou o meu balão.

- Se acreditares muito e bateres palmas as fadas não morrem, sabias?

Nunca deixei morrer uma fada... cansei as mãos em ritmos eloquentes até as deixar a arder. Vermelhas. Como o meu balão. E sei que é uma fada que o tem na mão e que o guarda, carinhosamente, numa redoma especial. Um dia terei a minha nave espacial e voarei vertiginosamente numa louca combustão. Baterei palmas ao destino, e a fada renascida será o menino que um dia perdeu o balão.