Caiu mais um raio, bem perto dele.. o cavalo estacou, interrompendo um louco galope, empinando-se.. saltou a ultima ferradura... o cavaleiro aguenta-se na sela e toca violentamente o flanco martirizado da montada com as esporas. Ergue a espada contra os céus negros, desafiando a fúria dos elementos.. mais um clarão a iluminar-lhe a face: livida e molhada, do temporal e das lágrimas de raiva e impotência... o cavalo cai, derrubando este estranho cavaleiro vestido de negro.. que sem olhar para o fiel companheiro de tantas batalhas, corre agora.. derruba arbustos com a espada, cai, levanta-se, corre... voa.. sente a sua alma a disputar-lhe a corrida, ultrapassando-o, invocando-o, incentivando-o.. « Mais rápido... ainda há tempo... corre Siegfried, corre...».. Viu enfim a capela.. e viu-a a ela, enfiando um pesado anel no dedo... ouviu o riso do senescal... não quis ver ele retirar-lhe o véu para a beijar... perdera. Finalmente caíra no campo de honra. Finalmente fora ferido de morte.. sempre soube que nunca devia ter partido para uma batalha já perdida... ajoelhou-se, gritando.. há quem jure que ainda ouve aquele grito gutural, sobrenatural, a assombrar a serra... estava só agora, imaginando a festividade que decorria no palácio.. imaginando o leito onde as carnes dela seriam maculadas por outro. Levantou-se e franqueou a porta sagrada.. mais um clarão a iluminar-lhe a face. Branca e aqueles olhos... inexpressivos, gélidos frios... despojados da alma que nunca mais recuperou na corrida... fechou a porta, recolheu as flores caídas pelo chão.. atirou-as ao ar, rindo.. derrubou as velas nos tecidos púrpura do altar e viu a derradeira fogueira crescer... ouvia os silvos das chamas bailarinas a aproximar-se do seu rosto. E decidido abraçou-as e dançou com elas com a morte a aplaudir, serena... as suas ultimas palavras são recordadas...
- Jamais alguém sairá deste solo imaculado. Condeno-vos! Condeno-vos ao amor eterno e não correspondido! Condeno-vos a sentir o fogo de amar!!
O fogo consumiu-o.. o fogo-fátuo de amar e o fogo quente que lhe devorou a pele...
OS DIAS DE HOJE
Conduzia pela serra, vidro aberto, sentindo aquele ar rejuvenescê-lo. Eram os dias felizes, em que se permitia acordar cedo e partir para Sintra. O ritual era sempre o mesmo. Comprava o semanário, ocupava uma mesa do Central, café e água castelo. Ainda ignora o que o levou naquele dia a escolher um livro de Neruda e a não parar na vila... e seguir até Monserrate.
O palácio nada lhe dizia... afastou-se e resolveu perder-se. Talvez para se encontrar. Desviou-se dos trilhos e entranhou-se naqueles arbustos, naquela verdura cerrada.. depois, veio o apelo. Soube que podia caminhar ali de olhos fechados.. visualizou uma trovoada, uma espada que gotejava chuva, lama, muita lama... com o espirito inquieto apressou o passo... estranhamente apetecia-lhe correr, correr.. nem precisava de pensar no caminho, era como se a sua alma o tivesse desafiado para uma corrida e o invocasse, e o incentivasse... « vá... é já ali... ali... »... chegou a umas estranhas ruinas. Pedras frias e decompostas, cujo tecto eram os ramos enormes de uma velha árvore que teimava em não contar os segredos seculares... olhou para uma placa: « Capela ». E desmaiou.
. . . . .
Tinha-a esperado tempo demais. Conduzia pela serra, vidro aberto, sentindo aquele ar e a companhia rejuvenescê-lo... ia alegre, tocando sempre nas coxas da bela mulher sentada ao seu lado. Ela sorria, ele sorria... parou o carro em Monserrate, e resolveu perder-se com ela... ou encontrar-se... ou saber... ou esquecer...
Ousou entrar com ela naquelas ruinas e olhou-a nos olhos... sim, eram os mesmo que o assombravam. Via nitidamente todas as vidas que ela teve, século após século.. o seu rosto mantinha os traços.. india, árabe... empurrou-a, colando as suas costas ás pedras frias e decompostas, observando os ramos enormes de uma velha árvore que os cobriam, sendo o único tecto que os abrigava... e beijou-a. E entregou-lhe a alma. E amou-a.
Uma voz ecoou dentro de si, fazendo-o estremecer... aquela voz... a sua própria voz...
« Condeno-vos ao amor eterno e não correspondido »..
OS DIAS DE AMANHÃ
Irei pela calada da noite, munido de archotes e picaretas.
Serei um gato « noutra vida quando ambos formos gatos ».
Felino, ágil, esquivo, saltarei o muro...
Queimarei a maldita árvore, cúmplice de uma antiga e secular maldição..
Derrubarei todas aquelas pedras até as deixar inertes, inócuas, inofensivas.
Finalmente, finalmente, maldita capela... liberto-me.
Serei acossado pelo mato, perseguido...
Mas a ultima palavra ainda será minha e será essa a ecoar
nos dias de amanhã
calando de vez a tortuosa condenação:
« E se ao dizer adeus á vida
as aves todas do céu
me dessem, na despedida,
o teu olhar derradeiro..
Esse olhar que era só teu
amor, que foste o primeiro..»